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Bandido bom é Bandido morto | Bruna Modesto

-Passa, passa, passa! — sussurra alto o Bandido, apanhando celular e carteira de um homem quarentão que passava ali na frente, dando mosca. Ele corre para o outro quarteirão para ver o que lucrou, cento e quarenta e oito reais e um celular com a tela rachada. Traficante nenhum vai comprar, pensa.


Anda até o metrô, no caminho assalta um adolescente que provavelmente estava voltando do colégio, mas rendeu só um telefone mesmo, pelo menos. Tem na mira o traficante que fica na saída, bem vestido, cabelo cortado e falando ao celular. Não soubesse quem era o teria assaltado pela pinta e cara de filho-de-papai que tem. - iPhone, Nego. Beleza? E se cumprimentam para disfarçar. Dá-se o celular, recebe-se o dinheiro, oitentinha. É o que tem para hoje, se reclamar leva pipoco.


Por sorte, não é viciado nem nunca experimentou droga, porque não é burro, ele gosta de pensar, tem dinheiro para sobreviver por duas semanas, resolve não roubar mais já que tem seu necessário. Não gosta de ser bandido, embora seja bom nisso, mas não teve escolha. Pais pobres e mortos, filho pobre e abandonado. Cresceu nas leis da rua, e ou você trabalha pra traficante, ou é morto por eles. Já é de maior há três anos, uma passagem pela polícia no currículo.


O Bandido segue para sua casa, que na verdade é o mundo todo, ele gosta de pensar, mas ele precisa guardar suas coisas em algum lugar, então segue reto até um beco perto dali, onde tem um latão com cadeado que ele tem a chave, todo mundo acha que é lixo e ninguém nunca tentou desocupar ou arrombar por isso. Ele tem umas roupas, seu papelão que se mantém sempre seco ali guardado, e um pote de margarina onde ele guarda seus trocados. Porque quando você não tá assaltando, você é morador de rua, passível de assalto também. Melhor não andar com muita grana no bolso, não pode moscar.


Dali, vai para a padaria, uma única na redondeza que deixa o Bandido entrar sem ameaçar chamar a polícia ou agredi-lo verbal, moral e fisicamente. Bandido é educado, pede licença toda vez, mas antes sempre espera todo mundo sair porque sabe que sua aparência e mal cheiro incomodam. - Oi dona Hilda, dá três pãozinho para mim? E um queijinho e um café, obrigado. Paga e sai o mais rápido porque tem cliente de verdade chegando.

Ele volta pro beco e come, atraiu um cachorro. - Mas que diabo! Cão só aparece para comer, e é tu de novo seu Amarelinho safado! Pega aqui, e dá metade de um pãozinho para o cão, que abana o rabo e late depois. Não tem mais não.


Dali segue para o jardim municipal, ninguém gosta muito dele ali também, mas traz paz para o pobre moço, coitado! Ele vai para um mesmo cantinho, distante das pessoas, por entre as árvores e deita olhando para o céu. Ali ele fica um tempo. Ouve passos próximos, vê que uma garota que deve ser estudante, ele pensa, porque está de mochila e livro na mão, sentou ali três árvores depois dele. Será que ela não me viu aqui? se visse logicamente não teria ficado tão próxima. O que será que lê? Pensa curioso o Bandido.


Lembranças começam a invadir o moço, de quando ele ia para a escola, já tinha onze anos mas aprendia com gente bem menor na mesma turma, numa favela ali não muito longe também. Bandido tem medo de sair da sua zona porque não conhece outros traficantes e nem quer conhecê-los, mas prefere não arranjar encrenca, vai que assalta em ponto rival. Ele tá morto. Prefere ficar na sua área, onde tudo é logo ali.


Lembra de um livro chamado O Mistério do Caderninho Preto, que não sabe dizer quem escreveu, mas o fascinou. Leu pouca coisa, preferia jogar pelota muitas vezes. Mas quando foi parar na rua, para não esquecer como se lê, ele pega o jornal que os homens de gravata jogam na lixeira e lê sempre que pode ou lembra. Cada notícia ruim e coisas que ele não entende e nunca viu!


Sai de seus pensamentos e volta sua atenção para garota, que é bonita ele pensa, poderia ser filha dele, ele gostaria de ter filha assim, bonita e que lê. Gente que lê parece mais gente do que quem não lê, ele gosta de pensar.


O livro é de poucas páginas, ele observa, é florido também pelo que parece, não tem certeza. Se aproxima, mais próximo, mais uns passos, outro. E de súbito, o livro passa das mãos da garota para as de Bandido, que sai correndo entre as árvores procurando a saída mais rápida, atravessa a rua e é atacado por buzinas. Ele continua correndo, já está longe, ninguém vai pegá-lo, ele nunca correu tão longe por roubar, mas ele corre, não consegue parar, ele corre até que suas pernas já não poderem mais, corre como um filho alegre indo abraçar a mãe.


Está arfando, pingando de suor, com o livro na mão, que só agora ele para pra ver. Não tem flor coisa nenhuma, tem uma moça que parece vestida com roupa de empregada, rosto longo, lábios finos e nariz ossudo, loira e de uns trinta e oito anos ele imagina, admirado. - A paixão segundo G.H. — ele diz para si ainda ofegante. E acha um canto que ninguém o veja para ler. E começa, e não entende de início, mas persiste. Dali uns minutos, ele chora. Chora e diz que é como se sente, sozinho como se já tivesse morrido, pois ninguém o nota, não faz diferença no mundo ele estar ali. E relê e chora, e relê e chora. Já prendeu muito o choro até ali. Desaba o Bandido diante daquele monólogo sobre amor e solidão.


Ele lê, recita, e repete, porque não quer esquecer nunca das palavras e pensamentos que lhe arrancaram lágrimas. Lágrimas essas que o livro arrancou do fundo do seu peito, da mesma forma que ele arrancou o livro das mãos da garota.


E pela primeira vez, sente vergonha de roubar. E chora o Homem.

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