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Eu matei um cara | Léo Ottesen

Não consegui mais suportar o peso das minhas pernas, então me sentei. As árvores dançavam ao vento suave de outono, as crianças corriam e riam e iam e. Desabei sobre o primeiro banco que passou por mim. O sol debochava.

Meus óculos tinham ficado em cima da cômoda do lado da nossa, digo, da minha cama. E olhar as coisas doía. Fechei os olhos e só senti o sol, o cheiro de grama cortada, de terra molhada da chuva que tinha caído na noite anterior, o cheiro de… Que cheiro era? Flor. Alguma flor, não sei qual, nunca entendi muito de natureza. Era bem bom.

O cheiro de flor sentou do meu lado e disse que o dia tava lindo e que nem parecia que tinha chovido né? Eu concordei com a cabeça sem abrir os olhos. E disse que o perfume dela era bem bom. E ela riu e disse obrigada. Um bicho de pena qualquer assobiou numa árvore qualquer e eu abri os olhos pra olhar pra ele. Não sei que passarinho que era, nunca entendi muito de natureza. Virei a cabeça e ela tinha levantado e andava em direção oposta à que a gente estava sentado. Usava um vestido florido. Num pequeno momento eu cheguei a pensar que o cheiro vinha das flores estampadas e depois pensei que eu devia parar de beber no meio do dia.

Não tinha mais nada pra mim ali naquela praça, então eu levantei e voltei pra casa. O sol ainda debochava e os meus olhos doíam porque ardiam e minha mente doía porque eu não conseguia distinguir as pessoas na rua, saber se eram felizes ou não. Eram todas borrões e vultos. Em casa, no banheiro, lavei o rosto e olhei no espelho um homem que me olhava de volta e eu não sei quem era. Senti um cheiro amarelo, que já não era mais flor ou grama cortada ou bicho de pena ou rua molhada. Minha calça molhada de urina e o cara no espelho debochava igual debochava o sol. Ele tinha feito aquilo comigo sem antes sequer se apresentar.

Tomei banho e coloquei uma roupa limpa e escovei os dentes. Então lembrei que não tinha comido e comi e escovei os dentes e. Acordei no sofá vermelho e a televisão estava mais ligada do que o normal. E as vozes risadas debochavam da minha enxaqueca. Senti um cheiro vermelho e metálico e olhei pra baixo. Sangue? Era suor.

Tropecei pela sala até o quarto e peguei meus óculos. Voltei pro banheiro de novo e tomei um copo d’água e olhei pro espelho. Não vi mais o cara desconhecido. Só vi eu. O mesmo eu que eu sempre via desde sempre. E num pequeno momento eu cheguei a pensar que era sangue mesmo. Eu tinha matado o cara do espelho. Mas eu estava sozinho na casa e na madrugada. Quer dizer que ninguém viu. Menos mal.

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